Por: Priscila Assumpção
Eu sou o bidê. Meus amigos foram sumindo, sumindo. Restam poucos como eu. Agora o pessoal prefere aqueles chuveirinhos que instalam ao lado da minha irmã, a privada. Os poucos que sobraram são lembretes de tempos mais tranquilos, onde não havia tanta pressa, onde dava tempo de passar de um assento a outro para completar a higiene. E havia espaço nos banheiros. Hoje em dia, mal cabe a privada e a pia. Banheiros eram mais nobres, espaçosos, onde pessoas passavam mais tempo do que agora.
Eu sou daqueles chiques que têm tanto água quente como fria. Ninguém merece sair de um xixi quentinho para um jato gelado, não é? Principalmente nos dias frios. E principalmente a minha usuária, Dona Maria Antonieta Carmem dos Santos Amorim Silva. Ela já está com seus 76 anos, e foi ficando cada vez mais sensível.
Pude acompanhá-la desde que se casou com Seu José. Ele nunca me deu atenção, e acho que até hoje nem sabe qual torneira é a da água quente e qual é a da água fria. Nunca me usou. Já Dona Carmem, como os amigos a chamam (acho que com a intimidade que temos, posso chamá-la assim também), desde que chegou não passa um dia sem nosso contato toda vez que usa a privada. Ela é muito cuidadosa com o asseio pessoal.
Lembro como era firme no começo. E por muitos anos. Agora já não está tão firme, o que é natural da idade. Mas o cuidado é o mesmo. Só levei um susto enorme daquela vez, muitos anos atrás, em que ela se sentiu mal ao sair do chuveiro. Só lembro do seu corpo nu vindo para cima de mim. Foi muito estranho, porque até então só havia conhecido a parte de trás. Nem sei como ela não se quebrou toda. Ficou entalada entre mim e a privada. Ainda bem que foi só um susto. Logo depois, acho que uns oito meses, a casa passou a ter uma nova voz. Só chorava. Mas cresceu e, aos poucos, a casa foi ficando cheia de vozes. Eu ouvia de longe, porque só Dona Carmem e Seu José entravam no meu banheiro. As vezes em que algum serzinho sapeca quebrava a regra e entrava são segredos que mantenho para não encrencar ninguém.
E assim passaram-se os anos. Talvez um dia, quando Dona Carmem se for deste mundo, alguém resolva que também sou dispensável. Até lá, fico por aqui.
Colaboração: Priscila Assumpção, Terapeuta, Mediadora, Especialista em Comunicação.