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A receita é lógica, cozinhar é arte

Minha mãe sempre cozinhou bem. Aprendeu com a vó Délia que, embora analfabeta, fazia batatas fritas como ninguém. Mas não eram apenas as batatas, tudo era gostoso, mesmo com poucos recursos, sem sequer ler uma receita.

Mas, voltando à mamãe, durante muito tempo eu só saboreava sua comida, porém quando comecei estudar arte, escrita, linguagem e filosofia, resolvi pensar na razão de seu sucesso à mesa.

Foram poucas as vezes que vi mamãe seguir uma receita. Sempre fazia de seu jeito e cada vez parecia sair diferente, e melhor.
Alguns pratos tinham nome, embora pudessem mudar. Por exemplo, o Bife do Neto virou Bife do Caio.

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A primeira coisa que notei foi o seu ar de satisfação com a mesa cheia e a alegria em seus olhos quando repetíamos várias vezes – mães italianas são assim, ainda mais as calabresas.

Eu já havia notado outros detalhes, como a panela de ferro que quase nunca era lavada, ela passava um papel para tirar o excesso de gordura e guardava no forno. O bife de hoje tinha a memória do bife de ontem – e o meu sempre era o último a ser feito, rápido e mal passado.

Um dia resolvi acompanhar o processo todo e fui com ela às compras. Eu empurrava o carrinho e, aqui e ali, pegava alguma coisa nas prateleiras: “Pegue aquele repolho mais verdinho”, “Não! Aquele limão”, “Aquelas batatas mais miúdas”, e assim ia.

O mais interessante foi comprar a carne para o bife do Caio. Ela começou explicando ao açougueiro que meu filho, Caio, não gostava muito de comer carne, mas que ela fazia um bife para ele. “Corte 2 kg de filet mignon bem fininho, mas sem furos” e ficava conversando com o moço. Pelo sorriso dele a mim, já ouvira esta mesma história muitas vezes. “Vou fazer o bife para meu neto. Vai um bife, duas fatias de presunto, duas de queijo, outro bife, aí eu empano, ponho dois palitos para prender e frito à milanesa” – uma espécie de misto empanado em que o pão era substituído pelo filet.

Naquele dia éramos 11 à mesa. Tinha o prato preferido de cada um, com saladas, arroz, verdura refogada, omelete, ovo frito e sei lá o quanto mais. Na hora do bife, ela nos lembrava que tínhamos que tirar os dois palitos (acho que havia na família uma história de alguém que ficou com um palito atravessado na garganta). “São dois palitos”, ela lembrava. E cada um repetia, rindo, dela e pra ela: “São dois palitos”. E ela reafirmava: “É! São dois palitos”, rindo meio brava.

Mamãe era brava, mas nessa hora era uma artista feliz com sua obra prima, como um tapete persa, nunca feita igual.

O que eu não tinha entendido ainda é que a obra começava dias antes, quando ela sabia que íamos nos reunir, assim como um grande autor, o prazer real está no que precede o momento, se fosse jogador de futebol diria que o prazer está no chute e não no gol.

Sua comida não tinha receita, não tinha a lógica, nunca era igual, mesmo que fossem os mesmos pratos, as mesmas pessoas, mas não era a mesma mãe.

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Antônio Fais

Colaborador

Escritor, Filósofo, Professor, Especialista em Linguagem e Aprendizagem.

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