Por: Vera Zaitune
Todo final do ano minha mãe tinha por hábito atualizar a sua agenda. Como professora, sua letra era muito bonita e pedagogicamente correta. Após aposentada, ela me elegeu como sua escriba nessa tarefa anual. Argumentava que a sua vida era muito agitada, muitos compromissos e que a minha letra era mais legível que a dela.
Eu fazia de conta que acreditava, sabendo que ela já não tinha paciência para essa atividade. O tempo confirmou essa impaciência quando ela teve o diagnóstico de Alzheimer. Agitação e ansiedade fazem parte dessa patologia.
Ela gostava de ir à livraria para escolhermos o tamanho, formato e cor da sua agenda. Com um jeitinho sorrateiro, me entregava o objeto e dizia para eu caprichar. No trajeto, conversávamos, dávamos risada, diminuíamos os nossos passos respeitando os limites do seu caminhar. Com o tempo, ela se cansava e nossas interrupções eram mais frequentes. Ela se encantava com as árvores, flores e fazia questão de me dizer os nomes de todas elas. O céu e o indispensável sol nos animavam a prosseguir. Assim procedemos até os seus movimentos permitirem. Com o andador, sair de casa era mais complicado, mas não impossível. Convidá-la para vermos as belezas da natureza era um estímulo para nos desfrutarmos mutuamente. Ainda que com o percurso reduzido, havia prazer nos encontros que ocorriam com suas amigas próximas ou mais distantes. Era nítida a alegria demonstrada pelo brilho dos olhos verdes, que em todos despertava palavras elogiosas. Vaidosa que era, ficava emocionada agradecendo com a meiguice que a identificava.
No caso do preenchimento dos nomes dos familiares e amigas, para cada um que eu escrevia, ela tinha uma história para contar. O ritual da compra da agenda foi se escasseando. A dificuldade para andar se intensificava junto das limitações para se recordar dos personagens que compunham esse instrumento de ajuda diária. Salvo raras exceções, os nomes soavam como desconhecidos. Dona Alda, sua amiga e colega de infância e escola se mantinha viva. Eu ouvia os mesmos relatos com paciência e admiração como se fosse a primeira vez.
Lembro-me da última vez que estimulei minha mãe às memórias da sua agenda. Não havia ninguém nas suas evocações. Percebi que ela se frustrou e sem querer demonstrar justificou o esquecimento pela distância que impedia contatos frequentes. Acenei positivamente em concordância com os seus argumentos.
Nesse dia, eu me entristeci ao constatar que ela não era mais dona da sua memória. Perdeu sua identidade, requerendo mais cautela e proteção nos cuidados devotados a ela. Instante emblemático na nossa vida! Na linha do tempo, compreendi que a partir daquele momento, fui promovida ao cargo de guardiã das memórias da minha mãe. O vazio das folhas em branco haveria de ser preenchido com outras experiências e realizações. Vida seguindo e me levando a rios, mares e lagos ainda não visitados. Eu me recompus e mantive comigo a certeza de que a alegria deveria ser o sentimento fiel no nosso relacionamento.
Solicitei ajuda para, em ordem alfabética iniciarmos a agenda do ano seguinte. Notei esforço e angústia traduzidos no seu olhar. Folheei a agenda antiga e com lápis na mão, constatei que quase não havia pessoas vivas. Cada qual no seu tempo e hora, havia partido para outro plano. Tragédia e comédia me invadiram em contraponto ao olhar atento da minha mãe à espera do nome a ser escrito. Felizmente, a dona Alda era o primeiro nome. Subitamente, recordei do comunicado da sua filha avisando sobre o seu falecimento dias atrás. Agi como se ela estivesse viva e ouvi a mesma história como de costume. No virar das páginas, me fiz corajosa em meio a um amontoado de emoções. Salvo o nome de duas tias, não havia mais ninguém a ter o seu endereço e contato registrados.
Agenda em branco, a nos lembrar que nos intervalos a vida surge e renasce. Efemeridade e urgência caminham na mesma medida. Existência que sinaliza a um atar e desatar os nós dos dias que a preenchem. Existência que nos convida a navegarmos em busca das maravilhas da viagem.
Com minha mãe, tentei sonhar os seus sonhos e caminhar por lugares desconhecidos, contemplando a sua companhia. Desafios saudáveis! Sem agenda, fazendo do riso e do olhar a nossa esperança.