Sítio arqueológico recém descoberto em Ipeúna fica às margens de um rio e pesquisadores estimam que local pode ter sido usado como acampamento ou oficina de ferramentas.
Já imaginou como era a vida há 4 mil anos? Arqueólogos resgataram itens feitos de pedra lascada no interior de São Paulo que podem ajudar a desvendar como era o cotidiano das pessoas que viviam na época nessa região. A pesquisa ainda utilizou inteligência artificial para criar imagens de possíveis usos dessas ferramentas encontradas.
Os 2 mil objetos foram retirados no fim de 2023 de um sítio arqueológico recém descoberto em Ipeúna (SP), a 194 quilômetros da capital. O local, às margens de um rio, passou por pesquisas que acompanham o processo de licenciamento ambiental relacionado à instalação de uma usina de compostagem na região – e durante o processo os itens foram encontrados.
Segundo a arqueóloga coordenadora do trabalho de laboratório, Caroline Rutz, ao todo foram descobertos 2.030 objetos, sendo que um terço são ferramentas prontas usadas para os mais diversos fins.
“Caça, processamento de madeira, de fibras, de todos os trabalhos que eles precisavam fazer no sentido de se manter vivos, de se manter aquecidos, de fazer um abrigo para viver, enfim”, explicou.
Dois terços dos objetos eram as lascas dessas pedras usadas na fabricação. “São lasquinhas de pedra. Então assim, a gente recuperou não só as ferramentas prontas, mas também toda a cadeia de ações que eles faziam, como eles lascavam, porque os resíduos estão ali”, completou.
Os materiais foram encontrados a cerca de um metro de profundidade e, segundo a arqueóloga, isso também conta a história dos itens. “O material que está mais próximo da superfície é mais recente, quanto mais fundo você escava, mais antigo é. Faz parte da formação natural do terreno”, explicou.
Caroline também explica que o jeito de lascar as pedras que a população da época usava também é analisado, além das rochas que foram usadas para fabricar as ferramentas. Em todo sítio arqueológico encontrado, os pesquisadores analisam essas características, além do formato dos instrumentos, e cruzam esses dados para interpretar, como uma “assinatura tecnológica”.
E tudo isso ajuda a estimar de qual época é o material e como ele era usado. Os pesquisadores que atuam na análise das ferramentas encontradas em Ipeúna estimam que elas foram fabricadas e usadas entre 4 mil e 8 mil anos atrás – mas os itens ainda estão passando por análises e sendo estudados.
Serra, batedor, flecha…
Entre os itens mais curiosos encontrados nesse sítio arqueológico estão gumes serrilhados – que seria uma espécie de serrote ou faca com serra. Há também uma ponta de lança, que é uma pedra afiada, que na época era usada na ponta de um galho como se fosse uma flecha.
“São instrumentos bem característicos da região, que são desde o primeiro período de povoamento, ou seja, até uns 8 mil anos atrás. As pontas de lança eram fabricados e utilizadas pelos caçadores. Eles botavam essa ponta na extremidade de um galho, de uma haste, e atiravam com arcos ou direto com a mão para caçar animais”, explicou.
A parte encontrada e preservada dos objetos é o que era feito de pedra, já que os cabos e fios eram feitos com objetos como couro e madeira, que se decompõem mais rapidamente na natureza.
Também foram encontrados cortadores, furadores, bigornas, batedores, e outros itens que ainda estão sendo estudados pelos arqueólogos. As peças serviam para trabalhar fibras vegetais, madeira, pigmentos, além de auxiliar no processamento de carnes, ossos, tendões, chifres, dentes, couro, conchas, cascos etc.
Uma raridade da arqueologia
Tanto os objetos prontos, quanto as lascas que foram encontradas contam a história das pessoas que viviam nessa região na época – algo raro de se achar. “Temos pouquíssimos dados sobre o período das primeiras ocupações humanas aqui no que hoje a gente chama de Brasil”, argumentou Caroline.
Segundo ela, o que existe hoje de resquício das civilizações mais antigas são os itens que duram muito tempo, como as rochas. Em outros sítios arqueológicos pelo Brasil também já foram encontrados esqueletos e arte rupestre, com pinturas e gravuras nas paredes de pedra – e isso também dá outras pistas de como era a vida na época.
“Mas isso é muito raro. Então a gente só tem as pedras que eles usavam e como eles usavam essas pedras, por isso que se torna tão importante entender como eles faziam. Isso é basicamente o que a gente tem em termos da tecnologia deles”, explicou.
Inteligência artificial a serviço da ciência
Para além de descobrir e estudar os objetos, o grupo de pesquisadores também se empenhou em dar um contexto para o que foi encontrado. Eles geraram imagens por meio de inteligência artificial para simular como esses objetos eram usados, com base em estudos científicos e em outros itens encontrados em sítios arqueológicos do interior do estado.
Segundo Caroline, as imagens não devem ser consideradas como um documento científico, mas apenas como uma base para contextualizar as ferramentas, como eram feitas e usadas pela população que viveu na região há 4 mil anos.
“Se a gente acha um objeto de museu mais clássico, como aquele ferro de passar de brasa da avó. As pessoas mais ou menos já entendem o que é. Agora essas coisas tão antigas, de milênios, ninguém nem sabe nem por que lado pega ou o que é”, argumentou.
Por isso, o grupo usou da tecnologia disponível para fazer os cenários. Ela afirma, porém, que muitas das imagens geradas precisaram de correções e edições, porque as ferramentas disponíveis atualmente geram imagens com vários erros.
“A inteligência artificial está aí, é uma realidade e é inegável. A gente tem que se aproveitar disso para a ciência, tem que fazer disso uma ferramenta útil. Então o que nós temos utilizado é o nosso conhecimento de arqueólogos para sugerir cenários.”
A arqueóloga ressaltou que as pessoas presentes nas imagens são apenas para contextualizar o uso das ferramentas, mas que a fisionomia delas não foi baseada em nenhum estudo científico sobre o assunto.
“O nosso foco não foi passar uma imagem, um retrato do que era. É somente fornecer algum contexto que auxilie as pessoas para que elas próprias possam utilizar a imaginação delas, olhar para aqueles objetos e conseguir também visualizar possíveis usos.”
Os pesquisadores se basearam na paisagem da região, que fica localizado na beira do rio Passa Cinco, para descrever os cenários, também no relevo e vegetação do local, além do período em que os objetos teriam sido usados.
Participam da pesquisa de laboratório os especialistas Andrezza Bicudo da Silva, Beatriz Gasques Favilla, Camila Campos Olandim, Cleide Trindade, Hyrma Ioris, Journey Tiago Lopes Ferreira, Marcia Regiane Sodré dos Santos, Pedro Müller Jr e Yan Santos Trovato. O estudo é coordenado por Lúcia Oliveira Juliani.
Fonte: g1 Piracicaba e Região