A minha vida era de menino irrequieto do interior. Morávamos de aluguel nos fundos de um casarão. Eram cinco casas em um quintal redondo que pertencia a todos – o quintalzão. Havia ainda a casa do farmacêutico e o fundo do casarão, mas ambas, por terem saída para a rua, não se sentiam ligadas ao quintalzão, cujas as portas e janelas se olhavam de frente.
Lá, nós moradores e crianças do quarteirão, vivíamos a brincar de bicicleta, de correr, pegar, jogar bola e em batalhas mil. Era comum a bola bater em portas e janelas, e levarmos broncas todos os dias.
Havia também fios que cortavam o quintalzão levando eletricidade às casas. Uma vez eu chutei uma bola que bateu em um fio que encostou em outro e saíram faíscas. Eram bonitos os sons e luzes produzidas por este encontro, ficamos a admirá-los por uns segundos. Fiquei feliz também por eu conseguir chutar uma bola tão alta assim. Mas o resultado não foi tão bom, duas casas ficaram sem energia até a manhã seguinte. Quando perguntaram quem havia feito tal proeza, acusei-me de pronto. Apanhei de cinta e fiquei de castigo. A surra foi breve (e justa), causou-me dor passageira. Não me lembro do castigo, mas como durou mais tempo, pareceu-me excessivo, talvez por não me lembrar mais da causa após um dia. Sabia o fato de origem, mas já não me tinha valor moral algum, e para a criança que era, um dia pode ser tão distante como um século.
Na semana seguinte, quando pude voltar a brincar, um deles, o Chico, creio, que era o mais velho, falou da injustiça de eu assumir a culpa sozinho. Eu não entendi bem a conversa, pois foi meu o chute potente que fez a bola alcançar os fios, também não alcancei a vantagem de todos ficarem de castigo. Mas, conversa vai, conversa vem, decidimos que éramos um time. “Um por todos e todos por um” – não, esta frase não foi dita, pois nenhum ali tinha lido Alexandre Dumas, mas como representa bem o espírito, a frase fica.
Daí em diante, os pequenos acidentes eram por todos assumidos. Até que um dia a bola atingiu a bunda de D. Maria, moradora da Casa 3. Tentamos coletivizar a culpa, mas ela viu que o Chico havia chutado a bola, e “de propósito”, dizia. O castigo foi brando, pois D. Cida, mãe do Chico, não gostava da vizinha.
Foi por esta época que tivemos a ideia de fazer as máscaras. Alguém havia visto em um filme justiceiros do sul dos Estados Unidos que usavam máscaras brancas contra bandidos e não podiam ser nominados. Eu achei a ideia brilhante e, como não tínhamos pano suficiente para todos, sugeri fazer com os sacos pardos de pão que diariamente buscávamos na padaria. Furamos nos sacos os olhos, nariz e boca, e eles nos protegeriam de nossos crimes e futuros castigos.
Mas rapidamente provou-se ineficiente a estratégia. Fazíamos uma guerra de mamona no quintalzão e alguém atirou uma que quebrou a vidraça da Casa 2. Posso lhes afirmar apenas que não fui eu, mas D. Maria, a mesma da bola na bunda, que não gostava de minha mãe, acusou-me! Apesar das máscaras, ela tinha certeza de que fora a minha mão que quebrara o vidro.
Apesar das máscaras, ou por causa delas, ninguém mais assumiu a culpa. Esta surra e castigo doeram muito mais que todos os antes vividos, pois eram injustos, pois eu fora traído por um bando de mascarados.
E foi neste dia que tirei a máscara de papel e pus uma outra que me acompanha até hoje.
(continua no próximo domingo)