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Medo

Por: Antonio Fais

Exceto os normais da infância, nunca tive muitos medos ou, ao menos, não me lembro deles. Com o passar do tempo, o único temor que se alojou em mim foi o da invalidez ou o de uma morte lenta e dolorida. Que morreria um dia, sempre soube, mas, quando viesse, que fosse rápida, de preferência dormindo.

Este temor se desenvolveu devagar. Começou antes mesmo de eu nascer, quando o meu avô tinha tido, aos 41 anos, um derrame que o deixou cinco anos sem poder andar. Sua vida de administrador de fazendas, cheia de atividades e abastada pela riqueza do lugar, foi substituída pela cama em outra cidade, sem sequer ter como sustentar a família.

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Após esse período, voltou a andar, aprendeu a escrever com a mão esquerda e, com muito custo e a ajuda de amigos, conseguiu aposentar-se e uma concessão para vender bilhetes de loteria. Essa é a primeira lembrança que tenho dele: saindo de casa, de terno e bengala, em seus passos lentos, para ir à rodoviária vender bilhetes da loteria federal.

Como a dificuldade para entender o que falava era grande, pouco conversávamos com ele.

No fundo, todos o tratavam como um retardado, como se o derrame tivesse afetado sua capacidade de pensar, entender ou se lembrar das coisas – ledo engano.

De fato, só conheci meu avô quando fiz doze anos: juntos com minha avó, fomos, de ônibus a Borborema, interior de São Paulo, onde morava seu pai, meu bisavô. Passamos, naquele julho frio, alguns dias juntos na fazenda em que ele fora criado, tomando leite de vaca, tirando água de poço e esquentado o banho no fogão a lenha. Sem TV, dormíamos às oito da noite e levantávamos às quatro da manhã. Era uma farra poder ir ajudar na lida e, à tardinha, depois do jantar, papear com os adultos. Foram muitas histórias dele, de seu pai, muito lúcido ainda, e de seus irmãos.

Ele tinha uma memória e tanto; suas histórias eram engraçadas e ricas em detalhes.

Da casa de meus avós, guardo também o sabor da comida, ou melhor, a falta de sabor.

Não havia nada mais insosso que a comida que tínhamos que comer: sem sal, sem gordura! Imaginei que ele sofresse por ter que comer sempre aquilo, ser amparado para tomar banho e levar uma vida medíocre e limitada, para quem já teve tanto poder e gente para lhe obedecer. Diziam que ele era muito duro com minha avó, os filhos e empregados.

Ele morreu aos 71 anos. Minha avó, sem muito que fazer depois, não durou um ano a mais. Tiveram, creio, trinta anos de uma boa convivência.

Com minha mãe foi diferente: ela passou mal, com infecção no ovário, foi operada às pressas. Teve um quadro de septicemia, entrou em coma e morreu em três dias! Em uma época que ainda não tinha celular, fiquei sabendo de sua morte no aeroporto de Atlanta.

Não cheguei a tempo do enterro. “Não sofreu”, diziam quando cheguei.

Como todos os meus avós morreram do coração, sempre fui atento à saúde e, além acompanhar os triglicérides e o colesterol, nunca deixei de praticar esportes e, recentemente, encasquetei em participar da São Silvestre.

Treinava para isso, correndo nos arredores da cidade, quando, de repente, senti uma forte dor no peito. Caí instantaneamente. Sabia o que era aquilo e, mais que isso, mesmo que não fosse um infarto fatal, ninguém me acharia ali. Ou seja, era o fim! A dor era intensa e fulminante. Teria ali mais um ou dois minutos. Pouco tempo para pensar em tudo que fiz ou deixei de fazer; para descobrir e, talvez, recuperar as besteiras que fiz… ou deixei de fazer.

Nesses minutos, a única coisa que me veio à cabeça foi meu avô. Ele sim teve tempo, quase trinta anos para lamentar, pensar, aprender, esperar e, finalmente, me ensinar algo.

Como a vida poderia ser tão injusta de me levar assim de forma tão abrupta? Acho que suportaria com prazer algumas dores e privações por essa oportunidade! Era só isso que queria: uma morte lenta, mesmo que fosse com sofrimento.

Acordei depois de algumas horas no hospital. Alguém que passava por lá me viu caído e ligou para o resgate. Feitos os exames nada foi descoberto. Não tive absolutamente nada!

No dia seguinte já estava nadando e correndo novamente!

A única coisa que realmente mudou em mim foi o medo: agora morro de medo de morrer dormindo, sem saber que morri!

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Antônio Fais

Colaborador

Escritor, Filósofo, Professor, Especialista em Linguagem e Aprendizagem.

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