Por: Antonio Fais
Não seria possível acreditar: ele estava sentado ao seu lado no avião – sua grande paixão de infância. Quanto tempo? Quando foi a última vez que tinham se visto? Janeiro de 74.
Sábado, 19 de janeiro, às oito da noite. Aeroporto de Congonhas. O pai dele iria trabalhar nos Estados Unidos e ela foi com toda a escola se despedir dele e da irmã no aeroporto.
Havia lhe feito um cachecol, pois imagina fria Nova Iorque nesta época do ano. As últimas palavras dele a ela foram: “Você é…”, mas todos começaram a cantar uma música de despedida e nunca mais se viram. Agora ele estava lá, ao seu lado e nem lhe havia reconhecido.
Dele ela sabia tudo ou quase: morava na Rua Ria-chuelo, 402, perto do Parquinho. Era um aluno fraco que quase a fez repetir a oitava série… A mão dele não tinha aliança… Será que se casou? Tem filhos? Será que estudou? Quase não tem barriga… De ter-no!
Emocionada, ela se esqueceu até do medo de voar e nem percebeu a decolagem da ponte aérea Rio-São Paulo. Quando novamente voltou-lhe os olhos, ele a olhava fixamente, como quisesse dizer algo importante, como tivesse uma grande dúvida:
– Oi. Você é… – e parou hesitante a frase.
Ela se lembrou de sua última frase do aeroporto, das lágrimas sobre o piso preto e branco do aeroporto, e agora, como se o destino quisesse retomar exata-mente do ponto em que pararam. Mas, antes que ele continuasse, ela facilitou:
– Eu sou a Silmara. Lembra? Estudamos juntos da primeira à oitava série…
– Silmara Correia e Castro. Número 32, menos na sétima série, era 34. Rua Quintino Bocaiúva, 732, fone meia nove nove, depois dois meia nove no-ve… Melhor aluna da classe, tocava piano e organizava a equipe das gincanas… Você foi…
– Nossa! Nem eu me lembrava daquela época que os telefones tinha três dígitos. Como você se lembra de tudo isso depois de 32 anos?
– Trinta e dois anos e nove meses hoje! Tem coisas que a gente não esquece! Você foi…
– Lembra do final da oitava série?
– Lembro. Eu ia levar pau de matemática, você me passou a cola na última prova. Mesmo assim, eu fiquei de exame e, por sorte, você também.
– Não foi por sorte. Eu sabia que você não passaria no exame e ia precisar de cola novamente. Aí eu tirei uma nota bem baixa na última prova para poder fazer o exame final com você e estudarmos juntos.
– Puxa. Você iria se orgulhar. A partir daí me tornei um bom aluno. Cursei matemática… Em Harvard. Acredita? E hoje sou doutor em matemática! Acho que sem você eu teria repetido o ano e hoje seria… Sei lá! Você foi… Você é…
– Eu? Eu… Quem diria! Doutor em matemática!
Ele nunca foi muito bom com as palavras. A mão dela, cheia de anéis, não lhe permitia identificar se havia ali uma aliança ou não. Aquela menina magrinha tinha se tornado uma bela mulher. O que teria sido da vida dela. Por que ela nunca o deixava concluir a frase?
– E você o que faz? – Pergunta ela.
– Eu? Eu me casei, tenho dois filhos, um mora no Rio, depois eu me separei e agora…
Senhores Passageiros, estamos iniciando nosso procedimento de aterrissagem no Aeroporto de Congonhas em São Paulo. Por favor, apertem os cintos…
– Está tudo bem? – Perguntou ela logo após o anúncio do comandante.
– Não. Eu morro de medo de voar. Até me esqueci disso depois que a vi. Mas decolagens e aterrissagens quase me matam. Levo um bom tempo para me refazer.
– Segure na minha mão. Isso ajuda a diminuir o medo.
De mãos dadas, ela nem medo tinha mais. Poderia até cair o avião.
Juntos, sem perceber as mão dadas ainda, percorriam o piso xadrez do aeroporto donde tinham se despedido há 32 anos. Em silêncio, caminharam para os táxis, ela se despediu e entrou em um carro preto.
Do banco de trás, do outro lado da rua, ela se volta e grita:
O que você ia dizer naquele dia?
Ia dizer que você foi… você é…
Passa, porém, um ônibus entre eles que não a deixa ouvir a conclusão:
…o grande amor de minha vida – a todo pulmão.
E quando ele olha aliviado por finalmente ter concluído a frase guardada há 40 anos, o carro não estava mais lá.