O fascismo quer desumanizar o ser humano para torná-lo um autômato a serviço da barbárie. Trata-se de um estágio necessário para a construção de uma sociedade baseada na mentira, no autoritarismo, no ódio, na violência, no preconceito, no assassínio… Foi assim no Século 19, e o é novamente agora.
Mas como tão sórdido e atroz projeto é possível nos dias atuais, com todo o arcabouço legal, ético e moral produzido desde a derrota de Hitler, Mussolini e Tojo? Responder a esta indagação implica, forçosamente, uma reflexão sobre duas categorias: ser humano e educação.
Segundo Marx, a atividade essencial do ser humano, ou seja, o que o diferencia dos demais seres vivos, é justamente o meio pelo qual ele se relaciona com a natureza (que abrange todos os entes bióticos e abióticos do planeta, incluídos aí os outros seres humanos): é o trabalho! É por meio dele que os indivíduos exercem uma capacidade, exclusivamente humana, de adequar a natureza à satisfação de suas necessidades (construir um dique para armazenar água e não depender apenas das chuvas ou de rios ou lagos, por exemplo).
Para o filósofo alemão, é no tipo desta atividade que reside todo caráter de uma espécie: o “seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem”.
Contudo, Demerval Saviani e Newton Duarte chamam a atenção para um aspecto relevante: este atributo (o exercício do trabalho livre e consciente) não é transmitido pela herança genética, mas produzido historicamente pela humanidade.
Ora, como exatamente a humanidade é produzida? Como as pessoas se apropriam dela? Como explica Saviani, é pelo trabalho educativo, que consiste no ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos seres humanos.
A Constituição Federal de 1988 apresenta outros elementos que devem fundamentar não apenas o trabalho educativo, mas também o comportamento individual e coletivo na sociedade brasileira, dentre os quais salientamos: a cidadania; a dignidade da pessoa humana; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; a prevalência dos direitos humanos; a defesa da paz; a solução pacífica dos conflitos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Indiscutivelmente, estes não são os princípios e os valores do fascismo. Afinal, eles não se coadunam com suas premissas elementares: o reacionarismo; o chauvinismo; o autoritarismo; o irracionalismo; o medo da diferença e da diversidade; a existência de um sentimento de frustração individual ou social; a obsessão pelo complô; o apelo à xenofobia; o conflito permanente contra adversários reais ou inimigos imaginários; o elitismo; o machismo, o heroísmo.
Por outro lado, o fascismo carece, para vencer sua guerra contra a democracia – além de condições sociais e econômicas exigidas para sua proliferação (a preparação reacionária destinada a enfraquecer as forças antifascistas; a existência de uma sociedade de massas de consumo dirigido e de capital financeiro) – não apenas destruir a essência humana e os valores democráticos, mas moldar um tipo específico de pessoa e afirmar suas crenças arbitrárias, insensíveis e conspiratórias.
Portanto, a ascensão fascista envolve uma empreitada educacional. Quer dizer, como assentar o heroísmo como um valor sem um processo educativo que vise à formação de heróis, que seja capaz de incutir nas mentes a aspiração pela morte, naturalizando-a como uma recompensa da vida heróica? Como impor o irracionalismo sem estabelecer um ensino baseado em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico?
Não é por acaso que a educação vem sendo alvo de ataques fascistas: programas governamentais e não governamentais como a escola sem partido e a escola cívico militar são exemplos evidente deste movimento. Em linhas gerais, busca-se retirar da escola sua face civilizatória e esvaziá-la em sua função de socializar o conhecimento científico.
Mais do que resistir, a educação precisa contra atacar.
Embora a educação, por si só, não possua o condão de superar o capitalismo – campo em que germina o fascismo – ela pode desempenhar um papel importante nesta guerra.
Uma propositura de Adorno pode nos servir como inspiração inicial! Envolto aos traumas desencadeados pela Segunda Guerra Mundial, o autor reserva à educação um papel de grande relevância: garantir que Auschwitz – campo de concentração criado por Hitler na Polônia, onde foram assassinados, entre 1940 e 1945, cerca de 1,5 milhões de seres humanos – não se repita.
Partindo do pressuposto de que todo caráter forma-se na infância, Adorno apresenta uma proposta educacional centrada em dois eixos: o desenvolvimento da autonomia e o estabelecimento de um clima intelectual, cultural e social que impeça o re-estabelecimento da barbárie, com o propósito de formar pessoas conscientes e emancipadas, capazes de tomar decisões de forma independente: uma “educação que busque retirar os homens de uma auto-inculpável menoridade”, fazendo-os responsáveis pelas próprias ações, inclusive no sentido de não se omitir diante do horror. Destarte, os homens não poderiam atenuar sua responsabilidade face à barbárie alegando desconhecê-la, muito menos se dizendo constrangidos a tais atos por forças exteriores.
Obviamente, esta (síntese da) proposta de Adorno não encerra a possibilidade de luta da educação contra o fascismo, mas pode ser um ponto de partida!
Adriano Moreira é diretor de escola e doutor em educação