Caixa de cobre foi colocada na Escola Sud Mennucci para ser aberta no dia 7 de setembro de 2022, na comemoração do bicentenário da Independência do Brasil, em pedido indicado em ata deixada na instituição. Material foi recuperado quase intacto por historiadores.
O que você diria para alguém que viveria somente 100 anos depois de você? O que deixaria? Cartas, fotos, documentos… quais objetos são capazes de contar a história da sua época? Essas perguntas foram feitas para uma geração de alunos e professores da Escola Estadual Sud Mennucci, em Piracicaba (SP), em setembro de 1922. Todos esses depoimentos foram guardados em uma cápsula para serem abertos no 7 de setembro de 2022, durante as comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil.
A caixa foi colocada bem no saguão da escola, um casarão que tem quase a mesma idade da cápsula e já foi tombado como patrimônio histórico. Bem ali, na manhã dessa quarta-feira (7), um grupo restrito de funcionários da escola e do governo do estado, ex-alunos, representantes do município e jornalistas aguardavam para testemunhar o que pedia uma ata escrita cem anos atrás.
A ideia visionária veio de Honorato Faustino, diretor da escola à época. Dentro da cápsula foi colocada uma série de objetos, cartas e documentos que pudessem contar um pouco como viviam as pessoas da época, o que pensavam do futuro e como estudavam os alunos que seriam a geração seguinte a viver no país.
Os objetos foram reunidos no período de celebração da Independência em 1922, mas a caixa foi fechada e colocada no saguão no dia 15 de novembro de 1922, data da Proclamação da República. “No dia 23, ele (Honorato) viu que a caixa não estava selada completa, resolveu abrir pra selar de novo, colocou mais alguns jornais e aí selou direitinho”, explica Maurício Beraldo, historiador do museu municipal responsável por acompanhar a restituição dos objetos.
Todos esses detalhes foram descritos em uma ata pelo diretor Honorato, que tanto contava como foi a cerimônia de colocação da cápsula (bem parecida com a que acontecia nesta quarta), instruções para ela ser aberta 100 anos depois, como ainda a descrição geográfica do exato lugar onde ela foi colocada (sabe Deus se no futuro aquela parede ainda estaria de pé ou abrigaria a mesma escola, não é mesmo?).
“A caixa de cobre está encerrada em uma câmera cimentada, na parede que separa o anfiteatro do vestíbulo, quase ao rés do chão, em frente à porta principal da entrada do edifício para o lado da atual Rua de São João”, dizia o texto – veja a íntegra da ata ao final da reportagem.
A maior apreensão de todos ali – e expectativa de quem esperou décadas para acompanhar esse momento – era se os objetos e documentos teriam se conservado após todos esses anos “enterrados” na parede. A caixa foi retirada na presença de todos, mas levada logo em seguida pela equipe do museu para o laboratório da escola, onde foi aberta sem que a luz do lugar pudesse danificar o que tinha dentro.
Ao voltar do laboratório – onde apenas alguns objetos que estavam mais sólidos foram expostos ao público – Maurício conta que quase todo o material foi salvo: matérias que os alunos estudavam, boletins e trabalhos escolares, selos, dinheiro, materiais escolares, jornais e registros das comemorações da Independência, fotos que incluíam um professor lecionando uma aula de química e alunos se exercitando no pátio durante a aula de educação física. “Mas tudo de terno e gravata”, comenta sobre o costume da época.
“O mais difícil foram as fotos, algumas quase se apagaram, mas o resto conservou quase tudo.” O historiador comenta que todo o material foi cuidadosamente embalado, o que ajudou na conservação, e que inclusive todas as fotos continham descrições de datas, nomes e detalhes em todos os itens da caixa. “Agora a gente vai ter que se debruçar sobre cada objeto, estudar cada um deles, higienizar, colher todas as informações para depois poder apresentar para vocês.”
Após todo esse processo, o conteúdo da caixa ficará exposto no Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes, em Piracicaba. A previsão é que o público possa ver tudo em novembro deste ano, de acordo com a Secretaria Estadual de Educação Municipal.
Histórias que se cruzam
A relação da Escola Sud Mennucci com a Independência – data escolhida para as cerimônias da cápsula – começa pela fundação da instituição: 21 de abril de 1897 – mesmo dia e mês de morte de Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira que lutou pela independência do Brasil. Nos primeiros 20 anos, ela funcionou com outro nome e endereço, sendo transferida para o prédio atual com a construção dele. Atualmente, mais de 600 alunos entre o 6º ano fundamental e o ensino médio estudam na instituição.
“A cápsula do tempo ter acontecido nesse ano foi um presente”, comenta a atual diretora da escola, Márcia Vieira, responsável pela organização do evento de abertura da cápsula. Ela assumiu a direção em 2020, um dia antes da pandemia suspender todas as aulas presenciais por quase dois anos.
“Esses alunos que não conheciam a escola puderam conseguir essa identidade através da fala de ex-alunos, ex-professores que circularam por aqui esses últimos seis meses todos dando entrevistas, depoimentos, contando histórias. Foi um processo desafiador, mas muito rico”, conta.
Em 2022, uma série de atividades foi realizada com os alunos para que eles conhecessem a história da escola, e ainda, imaginar como era o tempo 100 anos atrás quando alunos como eles passeavam pelos corredores da escola imaginando como seria o futuro.
“Todas as turmas fizeram trabalhos em relação à cápsula, enquetes para saber o que eles achavam que tinha, o que eles colocariam na cápsula”, conta Márcia. Nas salas da escola, fotos históricas foram resgatadas de uma época em que alunos tinham que assistir às aulas separados por gênero.
“Eles puderam olhar o muro que dividia (o prédio), porque era uma escola que de um lado era só homens, de outro só mulheres, eles não se misturavam. Inclusive a sala oficial da direção tem duas antessalas, porque meninos entravam por uma porta e meninas pela outra. Tem duas quadras, uma feminina e outra masculina.”
“Então fazer esse resgate com nossos alunos e pensar assim: ‘o que será que aquele jovem daquele período pensava’, foi muito interessante. Inclusive pra pensar assim: que jovem estudava nessa época? Porque o analfabetismo era gigantesco, [estudo] não era pra todos. Que sociedade era essa?”
A diretora criou um coletivo para organizar todas as atividades, que incluíam ex-diretoras, ex-alunos, ex-professores, pesquisadores e associações. Ela mesma se inclui na lista de quem passou pela tradicional escola, Márcia foi também aluna e seguiu carreira universitária antes de voltar para o Sud Mennucci e estar à frente do “Dia D”.
“Imagine, eu fiz magistério aqui, então na escola, eu tinha uns 16 anos, uma menina sonhando em ser professora. Olhar pra aquela cápsula era: ‘nossa, vai demorar muito tempo’. A gente achava [naquela época] que ia estar velha com 49 anos. Jamais imaginei que eu estaria aqui.”
Gerações de memórias
E imagine então como se sentiu quem faz parte do que carrega uma caixa de cobre enterrada há 100 anos. “Minha mãe sempre me contava sobre isso, que ela tinha 17 anos quando colocaram a caixa [na parede]. Não sei se ela escreveu alguma coisa, provavelmente escreveu”, relata Cloris Canto De Lazari, segurando a emoção na expectativa de, talvez, poder ler palavras póstumas da mãe, que morreu em 2005 aos 86 anos.
Cloris presencia a retirada da cápsula com quase a mesma idade que a mãe tinha quando morreu, 85 anos. “Era muito importante pra ela, mas ela sabia que não iria ver isso. Eu fiquei muito feliz [ao ver a caixa], mas ao mesmo tempo um pouco triste também né, porque não a tenho mais.”
Benedita Ivete Negreiros, de 73 anos, foi diretora da escola por 13 anos, deixando a instituição em 2000 logo após participar do centenário da escola. O marido dela, Antônio Negreiros, de 80 anos, estudou na instituição antes de os dois se casarem, herdeiro de uma tradição familiar. “Meu pai é formado aqui de 1932, minha mãe de 1925, eu em 1960 e minha filha em 2005.”
Maria Terezinha Germano Peressin brinca dizendo que nunca saiu da escola. “Eu estou aqui desde os 11 anos de idade e nunca mais saí, fui aluna, fui professora, diretora substituta, e agora acho que sou a decana [risos]”, brinca. “São gerações, meu pai estudou aqui, eu estudei, minhas filhas estudaram aqui.”
Ela se lembra de quando, ao lado das amigas, sentava perto da parede imaginando o que a caixa guardava. “As menininhas faziam rodinha em volta da cápsula, os meninos faziam rodinha, ficavam conversando a respeito do que teria ali. Há 74 anos que eu espero [a abertura desta cápsula].”
Veja abaixo a transcrição da ata sobre a cápsula de 1922
Comemoração Cívica da data em que se proclamou a República dos Estados Unidos do Brasil – 15 de Novembro de 1889.
Fonte: g1 Piracicaba e Região