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Sem eira nem beira

Os alpendres estão se extinguindo. Não, não se sinta culpado por não conhecê-los, eles compunham a paisagem das casas do interior aqui de São Paulo nas décadas de 1970 e 1980. Neles, tínhamos uma marquise coberta voltada para a rua, e, por meio dela, as pessoas se acotovelavam no final de tarde para cumprimentar os vizinhos, ver o pôr do sol ou olhar o tempo passar.

Tenho duas grandes lembranças do alpendre, e uma delas se dava em minha infância. Tínhamos um vizinho que possuía em sua casa um pequeno pomar e, quando as laranjas estavam maduras, sentava-se no alpendre e se divertia em lançá-las na rua enquanto nós corríamos para ver quem conseguia tomar para si o maior número de laranjas possíveis. Pensando agora essa recordação, até hoje eu não sei classificar a razão pela qual fazia isso, isto porque era uma pessoa sisuda, muito séria, mas, naquele momento, abria o sorriso de canto a canto na boca.

Já a outra lembrança, esta advinha de uma paquera que mantinha diariamente com uma casa que fica no meio do caminho entre minha residência e a faculdade onde trabalho. É uma casa antiga, daquelas cheias de detalhes, e lá estava o alpendre, convidativo, resistente e espiritual, visto que, nesse em especial, tinha uma santa em uma casinha que todos os dias tinha uma luzinha ligada para dizer que a fé ainda animava quem habitava aquela casa e algumas pequenas flores cultivadas em vasinhos. Falei que era uma paquera e isso ocorria porque, no meu íntimo, sonhava um dia poder comprar aquela casa, torná-la minha, porque ela sinceramente parecia que me ligava a algo importante em minha vida e que é a típica coisa que não dá para explicar.

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No entanto, recentemente tudo mudou, não sei se os proprietários morreram ou simplesmente venderam o local, mas as mudanças ocorreram de uma forma rápida e inexorável. O calçamento foi imediatamente trocado e o atual proprietário escolheu um novo calçamento de cimento que, ainda que tenha uma construção geométrica incomum, remete definitivamente ao presente.

Já o alpendre, este foi necessariamente escondido. Também não sei se o atual proprietário o manteve pelo fato de que talvez a casa seja tombada pelo patrimônio histórico do município, mas a forma como ele foi escondido foi intrigante. No lugar onde ficava o vão onde havia a comunicação dos “de fora” com os “de dentro”, foi construída uma armação metálica fechada, com material que lembra metal antigo e alguns detalhes vazados que lembram uma arte e que permitem uma pequena fresta de sol no alpendre escondido.

A intenção foi clara, dar um certo ar do tempo que se foi ao local, manter alguns sinais de que a barreira construída não é somente metal, mas o fato é que o alpendre foi irremediavelmente tomado pela escuridão e pelo afastamento. Não sou capaz de julgar o que levou seu dono a tomar essa decisão, talvez tenha sido essa praga contemporânea chamada medo/violência, mas eu acredito, no íntimo, que ele sentiu certa culpa ao fazer tal mudança e essa culpa se manifestou na colocação de um outro item inusual a compor a paisagem, a inserção de uma floreira na frente da estrutura de metal. Percebi que a floreira teria por intensão clara dar uma certa vida à parede metálica e o fazia bem ao seu modo, no entanto, com o passar dos dias, para infelicidade minha, percebi que as flores nunca murchavam ou sofriam com as mudanças das estações, eram irremediavelmente flores de plástico, com cores vivas, mas oriundas do mais fino e belo… plástico.

Essa experiência toda que revivo vez ou outra, ao olhar com mais atenção para esse detalhe no decorrer do meu caminho, me remete a um conceito muito caro na filosofia, o de simulacro, ou seja, uma aparência que não se refere a nenhuma realidade subjacente. A isso os gregos chamavam de eidôlón ou phantasma, uma cópia do real. O mais interessante disso tudo é que, no passado, os simulacros/eidôlón surgiam para simular a existência de algo inexistente e, agora, eles surgem para ocultar o existente.

Disso tudo, para encerrar nossa conversa, eu confesso que torço para que os simulacros que escondem alpendres possam, quem sabe um dia, serem destituídos de sua função e que a ponte entre humanos advinda dos alpendres possa voltar a fazer parte de nosso cotidiano.

Prof. Dr. Edson Renato Nardi
Coordenador – Filosofia Presencial e EAD
Centro Universitário Claretiano
(16) 3660-1777 Ramal 1472
[email protected]

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