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Um sabonete

Carlos foi meu melhor amigo na infância. Havia pra lá de 40 anos que não nos víamos. E, de repente, estávamos no mesmo hotel.

Eu o vi passar de mãos dadas com uma mulher bonita, mais jovem que nós. Tínhamos seis dias de diferença. Mamãe dizia que foi um primeiro amigo, pois ambas as mães encontravam-se nas consultas com o pediatra.

Eu me escondi atrás do jornal que estava lendo. Não queria encontrá-lo. Não queria que ele me visse.

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Eu vestia camiseta, jeans e tênis; ele, terno e a bela mulher mais jovem. Eu sozinho escondido atrás de um jornal.

Até há poucos minutos, eu havia me esquecido de sua existência, inclusive de nossa briga e o motivo pelo qual perdemos a amizade. Lembro-me apenas que foi algo sério, que me deixou fundas marcas.

Morávamos perto. Éramos pobres, mas não no sentido exato da palavra, apenas não tínhamos as coisas, mas não passávamos fome ou frio, e tínhamos boa educação em ambos os sentidos. Em nossas casas, porém, tudo era medido, tudo era contado, desde a marca do óleo ao sabonete, sempre tudo da marca mais em conta.

Juntos jogávamos bola, líamos, tocávamos violão, todos os domingos nadávamos na piscina municipal – tudo nos unia. A primeira vez que nos apaixonamos foi ao mesmo tempo e pela mesma menina. Até nisso concordávamos. E este consenso nos fez mais amigos ainda. Nessa fase, passávamos horas falando dela. Mas, juro, não me lembro de seu nome por mais que me esforce.

Naquela época, ricos e pobres misturavam-se em escolas públicas. E tinha um garoto que tinha um cheiro diferente, um cheiro especial, cheiro de rico, cheiro de rosas. Ricardo usava sabonete de rosas, sabonete de rico. E vivia rodeado de garotas. Acho que elas gostavam de seu cheiro.

Eu fui ao mercado perto de casa para ver o tal sabonete, fui a outro no centro e outro, e nada! Até que me ocorreu entrar numa farmácia fina. Expliquei à atendente e ela me trouxe uma caixinha com uma embalagem amarela e vermelha com escritos em preto. O aroma era inconfundível. Phebo. Odor de rosas. 90g. Desde 1930.

Tudo que estava apagado de minha memória tornou-se claro, Phebo. Luciane. A pequena São João del Rei nos anos 70. Rosas, Carlos, Luciane, eu, Phebo.

Mas o preço era o olha da cara. Muito distante de nosso padrão familiar aquela caixinha com três sabonetes. Isso se deu em seis de julho, um sábado, véspera de meu aniversário. E eu que, ciente de nossas limitações financeiras, nunca pedira nada de aniversário, implorei por aquele sabonete. E ganhei! Não a caixinha inteira, não três, apenas um!

No domingo, na piscina, nadávamos, eu, Luciane, Carlos e mais uma dezena de amigos. Mal eu podia esperar o banho e sair de lá perfumado. Quando chegou a hora, fomos os meninos ao banheiro, pus minhas coisas e o sabonete no box e fui fazer xixi. E, quando voltei, o sabonete não estava mais lá. Havia sumido. Eu havia sido roubado. Todos já haviam batido uma água no corpo e estavam lá fora, conversando, comendo pipoca e rindo. Ricardo, Carlos e Luciane. Senti o cheiro de rosas. Olhei para Carlos e disse algumas palavras altas, insultos e dei-lhe uma tapa na cara. Ele não revidou, talvez pela força, talvez pela culpa, talvez por medo ou pela pressa com que bati em retirada. E não nos falamos nos dias seguintes.

Seis dias depois, chegou em casa uma caixa com um sabonete de rosas. Estava, pois, provado que ele reconhecia a culpa e assumia o erro. Mas como poderia eu perdoar?

Dias depois, meu pai recebeu uma proposta para trabalhar fora e perguntou o que achávamos. Eu fui o primeiro a me animar e nos mudamos para a fria Curitiba. Um dia pareceu-me ver Luciane andando pela cidade, mas devia ser apenas uma garota parecida.

E tudo isso se apagou da memória, até hoje quando senti um cheiro de rosas e vi Carlos de terno andando de mãos dadas com uma jovem bonita. E eu aqui sozinho escondido atrás do jornal.

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Antônio Fais

Colaborador

Escritor, Filósofo, Professor, Especialista em Linguagem e Aprendizagem.

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