Gilberto Gil, um dos gênios vivos da história brasileira foi entrevistado, dias atrás, pelo Roda Viva. O artista, em mais de uma passagem, durante os cerca de cento e dez minutos de programa, permitiu uma doce ilusão: a possibilidade de imaginar que a tragédia fascista que vem desumanizando o Brasil nunca existiu.
Infelizmente, nem mesmo Gil possui o condão de fazer desaparecer as conseqüências do neoliberalismo no país, (morte, fome, miséria, desemprego, sofrimento, violência), tampouco as “pessoas nefastas” que o operam.
Por outro lado, ao ouví-lo [e vê-lo, ainda que inconscientemente, “atirar purpurina” na tese de Jessé Souza, apresentada pelo livro “A Elite do Atraso”], desaguamos na aceitação incondicional de um fato: aquilo que o Brasil tem de melhor, de especial e de enriquecedor é o povo brasileiro e sua cultura – contra os quais as elites econômicas e financeiras lutam uma longeva e inabalável guerra e nutrem tanto ódio.
Gil evidencia a apropriação da cultura erudita pelo povo e sua transformação objetiva, subjetiva e qualitativa em cultura popular. Suas palavras, gestos e pensamentos manifestam veias expostas de sua obra, onde latejam o conhecimento ético, o estético e o científico; que fluem visivelmente a serviço da essência, da dignidade e – para usar outra de suas expressões – da “cintilância” humana.
Para um mero expectador, sem qualquer talento ou formação artística, sobressai a impressão de que tudo que fervilha em Gil para transbordar em beleza e engajamento tem como fonte inesgotável a diferença, a diversidade, a universalidade – que não prescinde da singularidade, mas que estabelece com ela um intercâmbio ininterrupto –, a mistura…
Naturalmente, e intencionalmente, estas ideias, valores e símbolos ameaçam de morte um elemento central do fascismo: a busca pelo confronto permanente, e pela eliminação, daquilo que não lhe é igual ou mesmo semelhante.
Não procuramos omitir que as artes, como quaisquer invenções humanas, podem ser distorcidas, corrompidas e alienadas; logo, elas podem ser empregadas, ativa ou passivamente, para favorecer a barbárie – e há incontáveis exemplos disso atualmente, hipocritamente promovidos por supostos artistas populares.
Ainda assim, em seu âmago e em sua potencialidade, as artes e os artistas são oponentes ferrenhos do fascismo e de suas ramificações, como o bolsonarismo.
Colaborador: Adriano Moreira é diretor de escola e doutor em Educação.